domingo, 13 de novembro de 2011

“USO DO PRIVADO NO PÚBLICO”: ORDEM PÚBLICA E CORONELISMO EM SERGIPE

           Os juízes de Direito em Sergipe, que exerciam suas funções nas comarcas localizadas em áreas limítrofes, relataram aos presidentes do Estado sergipano os graves problemas relativos ao seu exercício profissional. Sistematicamente, as autoridades tinham dúvidas sobre a aplicação da sentença judiciária aos bandidos, também porque estes, após perpetrarem crimes no território sergipano, afirmavam ter domicílio no Estado vizinho Um dos problemas cotidianos enfrentados pelos juízes e promotores públicos foram as pressões do chefe político local para prender ou soltar tanto pessoas envolvidas em conflitos do povoado quanto visitantes que chegavam à localidade.
            A explicação dos problemas no exercício das atividades judiciárias pode ser encontrada na perseguição política e na consequente falta de garantia de vida para os juízes de direito ou para os promotores públicos quando esses não eram coniventes com os interesses do chefe político local. Também as relações entre juízes e presidentes do Estado raramente oram boas. Muitos governantes estaduais se desentenderam com as autoridades judiciárias e se utilizaram, assim como os líderes políticos locais, de diversas estratégias para perseguir e atrapalhar as atividades desempenhadas pelos juízes ou promotores públicos. (DANTAS, 1930).
            Os problemas de ineficiência no funcionamento da lei nas comarcas não eram derivados somente da defesa de interesses pelas lideranças políticas. Cotidianamente, o desacato, a desobediência e a falta de respeito por parte de muitos funcionários aos juízes de direito comprometiam o trabalho da Justiça. Muitos juízes também perseguiram os governos estaduais. Boa parte deles utilizava-se de vários recursos para desafiar presidentes de Estado. Em 1901, o Presidente Olímpio Campos denunciou um Juiz de Direito por ter mandado requerer a prisão de um indivíduo que fora perdoado pelo Governo anterior. Para Campos, o Juiz não havia respeitado o indulto, não buscara informações nos órgãos competentes e nem seguira os procedimentos impostos pela formalidade das leis. Ele, segundo Campos, queria incentivar o confronto entre os poderes executivo e o judiciário.
            Além de conflitos com o Presidente do Estado, as autoridades judiciárias cometeram diversas irregularidades no andamento dos processos dos presos,ou, melhor dizendo, agiram de má fé no arrolamento de algumas sentenças. A omissão e o descaso com os processos dos presos estiveram sempre presentes no cotidiano das comarcas. Assim, presos sem culpa formada esperavam durante muito tempo, nas celas das penitenciárias, o seu julgamento. A esse respeito, o Presidente do Estado, Olímpio Campos, em Mensagem à Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe, declarou, em 1901, que “autoridades judiciárias e policiais sejam mais ativas e zelosas no cumprimento de seus deveres, não dando lugar a que estejam por meses e anos, sem culpa formada, indivíduos sobre quem pesam acusações de crime”. (CAMPOS, idem).
            Havia acúmulo de processos, abandono das comarcas onde exerciam sua função e muitos juízes concederam habeas corpus sem critérios e formalidades baseadas nas leis. As cadeias públicas também apresentaram problemas semelhantes. Também elas, como órgãos responsáveis pela manutenção da ordem pública, funcionaram na base das relações pessoais As cadeias públicas estaduais em Sergipe eram quatro. Elas estavam localizadas nos municípios de Laranjeiras, Estância, Vila Nova e Aracaju. Exceto a de Aracaju e a de Laranjeiras, construídas ou reformadas no início do século, as demais tinham problemas na sua estrutura física.
            Passados 14 anos, a situação de algumas cadeias públicas piorou e outras continuaram da mesma forma que se encontravam em 1905. A da capital e a de Laranjeiras, que haviam sofrido mudanças, permaneceram nas mesmas condições em termos de precariedade assim como as demais
do interior do Estado.
           A maioria das delegacias se encontrava praticamente na mesma situação das comarcas e das cadeias públicas. Da mesma forma que se indicava uma pessoa sem qualificação para administrar as prisões, os mesmos critérios políticos eram utilizados na escolha dos delegados. O cargo de delegado era disputado por pessoas próximas às lideranças políticas locais. O delegado era, particularmente, o amigo pessoal de quem estava no poder e vice-versa.
            Em 1930, o Presidente Manuel C. Dantas acreditava que a solução para a presença de leigos nas delegacias, colocados por interesses políticos, seria a regulamentação da profissão de delegado em Sergipe e a sua remuneração.

A POLÍCIA

            Apesar dos dados serem dispersos, é possível perceber, pelas mensagens dos presidentes do Estado e relatórios dos comandantes do corpo policial, os mesmos problemas na polícia. A maioria dos agentes policiais sergipanos não tinha a mínima capacidade no trato com a defesa pública no interior do Estado de Sergipe. Muitos não eram capazes de fazer diligências e não possuíam a disciplina e a educação necessárias que lhes levassem a obedecer à hierarquia da instituição e tratar razoavelmente a população. (MENEZES, 1903; DANTAS, 1930).
            A desorganização da polícia sergipana pode ser constatada pelos exemplos de comportamentos e vida desregrada que os soldados e oficiais levavam nas sedes dos municípios ou nos povoados. Os policiais viviam num verdadeiro ócio e os oficiais estavam sempre metidos em confusões e exibições de suas fardas. (PRATA, 1934:28)
            Os soldados também usaram o seu cargo para atender interesses diversos nas várias regiões em que estavam sediados. Muitos, quando enviados para fazer diligência em determinada localidade, abusavam da sua autoridade, promovendo desordens nas feiras e festas populares. Além de todos os problemas citados, o número de soldados responsáveis pela defesa da ordem pública em todo o território sergipano era insuficiente. Em especial, nas localidades do interior de Sergipe, havia um reduzido número de soldados.

OS GOVERNOS E A ORDEM PÚBLICA

            A maioria dos presidentes do Estado de Sergipe justificou o reduzido número de policiais para a defesa pública pela falta de recursos financeiros do Estado. Na verdade, nenhum Presidente do Estado de Sergipe promoveu uma reestruturação da polícia sergipana no período de 1889 a 1930. A capital sergipana era exceção, como vimos no texto que trata do projeto modernizador para Aracaju.
            Com o objetivo de enaltecer a sua administração, todos os presidentes do Estado afirmaram ter garantido a manutenção da ordem pública graças à eficácia da polícia e ao povo sergipano, pacato, dedicado ao trabalho e obediente às leis. As relações sociais de poder foram entraves no funcionamento das comarcas, delegacias, cadeias e na funcionalidade da polícia a serviço da ordem pública. A polícia funcionava, por exemplo, para interesse pessoal, para perseguir um opositor. Mas, infelizmente, não funcionava adequadamente na construção de uma ordem pública para a sociedade como um todo.

Referência:
SOUSA, Antônio Lindvaldo. “ Uso do privado no público”: ordem pública e coronelismo em Sergipe (1889-1930). In:_____Temas de História de Sergipe II. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe/CESAD, 2010.

domingo, 6 de novembro de 2011

“PARTE DO OUTRO LADO DA MODERNIZAÇÃO...”: ARACAJU E OS HOMENS POBRES NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX

          Desde a sua fundação, em 1855, Aracaju sempre foi uma cidade de homens e mulheres pobres que se deslocaram de várias partes de Sergipe. Aqui eles ergueram suas casas nos morros de areia, nos mangues e lagoas. Entretanto, é no início do século XX que essa migração se intensifica. “Na medida em que a cidade de Aracaju passava por um processo incipiente de urbanização havia uma constante imigração de homens pobres vindos do campo Como a população pobre não possuía recurso para atender as exigências do ‘código de posturas municipal”, passava a construir seus casebres no lado norte da cidade, além do Camborge, no início da Estrada Nova (hoje Av. João Ribeiro), entre os manques do Olaria. A estrutura interna de Aracaju caracterizava-se pela existência de dois núcleos separados do centro da cidade. O “bairro industrial” ao norte, núcleo florescente onde se localizavam as duas fábricas de tecido da capital, e a colina de Santo Antônio, a noroeste (RIBEIRO,1934:46).
          
 Arruamentos em Aracaju, 1865. Fonte: http://aracajuantigga.blogspot.com/
       
          A valorização da área central e o estabelecimento das dificuldades de acesso desta área aos homens pobres aceleraram a ordenação de uma fisionomia para a cidade de acordo com os interesses dos mais privilegiados. O espaço urbano, neste sentido, começava a potencializar as contradições entre os vários segmentos sociais (SOUSA,1991:9) Os aluguéis das casas recebiam constantes aumentados nos seus valores, forçando a “expulsão” direta dos moradores para outras áreas distantes do núcleo central da cidade. O jornal “Correio de Aracaju”, em 1919 registrou, algumas vezes, a problemática da especulação dos terrenos e dos aluguéis das casas.
            Essa problemática assumiu proporções maiores na década de 1920 como aumento populacional em Aracaju. No período, o aumento do número de indivíduos que chegavam a Aracaju era sensível. A vinda de homens pobres para Aracaju e a sua fixação nas áreas mais afastadas do núcleo central, preocupava os idealizadores do discurso modernizador. Governo, higienistas, intelectuais e jornalistas, que faziam parte de um mesmo “grupo” de idealizadores do discurso modernizador, sentiam a necessidade de ampliação no processo de ocupação da cidade, interferindo nas novas áreas ocupadas por indivíduos pobres que chegavam, principalmente, do interior de Sergipe. Desejavam eles enquadrar determinadas áreas de habitações pobres dentro do modelo de núcleo urbano projetado, ou seja, seguir o modelo já idealizado e que na prática já surtia efeito na região chamada de “quadrado de Pirro”. Esses idealizadores “olhavam” a cidade numa dimensão maior e projetavam imagens de uma certa “harmonia” para toda a cidade. Para concretização de tal intuito, aperfeiçoaram-se os Códigos de Posturas, criaram-se novas leis e decretos de “integração” das áreas suburbanas.
 Construíra-se, assim, um projeto de aterros, desapropriações de casas para a formação dos novos traçados de avenidas e ruas dentro dos padrões que processavam no centro da cidade. Essas medidas começaram ser postas em prática na década de 1920. Foi nesse período que o “Santo Antônio” e o “bairro Industrial” iniciaram mudanças na sua estrutura. O alinhamento das ruas antigas e novas começou a direcionar como deveria ser seu crescimento. A avenida “Simeão Sobral”, hoje localiza no bairro “Santo Antônio”, fora aberta, alinhando as ruas adjacentes, definindo o surgimento de outras. No penúltimo ano da década de 1920, inúmeras desapropriações de casas populares também se processaram no Aribé (hoje Siqueira Campos)em decorrência do prolongamento da viação, à continuação da linha de bondes da empresa elétrica de Aracaju. Ruas como Vila Nova (hoje Neópolis) e avenida Goiás, sofreram profundas mudanças no seu traçado.
            O Aribé, desde 1923, tornara-se uma das regiões mais procuradas pelos indivíduos pobres. Possuindo sítios e áreas pantanosas, esta região acolheu famílias de emigrantes do interior do Estado, já que pela falta de espaços mais acessíveis no “Santo Antônio” ou “Industrial” se aventuraram a ocupar essas áreas totalmente não saneadas e difíceis para moradia Área suburbana que atraía muitos pobres, o Aribé passou a merecer cuidado por parte dos governante e dos donos de empresa. Novas ruas deveriam ser abertas e as existentes deveriam ligar o lugar ao quadrado de Pirro (Perímetro urbano da cidade de Aracaju). A “integração” dessas áreas suburbanas desejava, sobretudo, a submissão em grau maior do homem pobre. A definição objetiva do lugar de residência do pobre possibilitava controle sobre ele. Era um fenômeno que tinha sua razão de ser na fase de transição do país pós-abolição da escravatura. E um período de consolidação do trabalho livre onde as cidades passaram a sofrer mudanças nas suas estruturas atraindo uma mão de obra livre, despossuída de bens.
            Em Sergipe, isto igualmente acontecia. Homens pobres migraram para Aracaju, influenciados pelas mudanças que se processavam e, respectivamente, por questões emergenciais que sofriam o campo. Aracaju assumia, pelos anos 1920, a posição de maior centro industrial de Sergipe. Possuía duas fábricas de tecidos, inclusive que eram as maiores dentre as 8 existentes no Estado. Foram estas fábricas têxteis a opção possível de emprego e sobrevivência de uma população pobre que chegava a Aracaju. É, sobretudo, diante dessa importância significativa das indústrias têxteis que os donos das fábricas procuraram interferir no processo de idealização da “nova” fase que acreditavam começar a existir em Aracaju. Essa participação pode ser constatada nos relatórios das fábricas.
            A “Sergipe Industrial”, por exemplo, procurou construir vila operária perto da fábrica, contribuiu com a instalação do hospital Cirurgia, para a construção de uma escola pública e com abertura de novas ruas no bairro “Industrial”. Entre estas contribuições destacou-se a instalação de um parque de diversões em suas dependências.  Os donos das fábricas procuraram formar um “espaço de trabalho” onde a fábrica, a casa do gerente, a moradia do operário, a escola, o armazém e o parque, compreendessem uma “estrutura fechada” em si mesma, onde o trabalhador deveria ser submetido às exigências do capital. A construção do parque de lazer tornava-se o exemplo mais significativo da tentativa de imprimir um estreito elo entre a fábrica e a residência do operário. O parque fazia parte dessa estrutura onde tudo girava em torno da fábrica na obtenção de um maior controle sobre o trabalhador para que ocorresse uma maior produtividade. (SOUSA,Op. Cit.14).


 Fábrica Sergipe Industrial. Fonte: http://www.aracajuantigga.blogspot.com/

            Em torno da “integração” havia a justificativa da necessidade do desenvolvimento, da diminuição da “miséria”, fome e degradação. Estabelecer o domínio sobre os espaços dos trabalhadores, criando um espaço de produtividade, significava trazer benefícios a todos: ao desempregado, aos cofres públicos e à sociedade. A “integração”, por sua vez, não modificou em nada as condições de vida dos trabalhadores. Os operários têxteis, por exemplo, enfrentavam inúmeras dificuldades de moradia, salários, saúde e alimentação que contradiziam a ideia de prosperidade e a melhoria de vida que a fábrica prometia a quem nela trabalhasse. Como os outros trabalhadores (ferroviários, homens de docas, carroceiros, pedreiros, carpinas, sapateiros etc.), os operários têxteis presenciavam constantemente no seu cotidiano a rejeição e negação dos benefícios executados na cidade, nas fábricas.
            A visualização de que os problemas dos operários têxteis eram praticamente os mesmos do restante dos trabalhadores, os homens pobres, ampliam os limites possíveis de compreensão sobre o operário têxtil. A maioria dos trabalhadores se alimentava mal. O reforço alimentar era encontrado nos mangues e em pequenas plantações em terrenos abandonados. e nos fundos de quintais. Havia, também, o artesanato caseiro, os doces que, vendidos nas portas das fábricas, na feira ou nas ruas, serviam para comprar o pão ou produtos alimentares. Os vendedores desses produtos eram geralmente pessoas da família dos operários que ainda não trabalhavam, sobretudo crianças, na tentativa de ajudar no orçamento da família.
            Os problemas de saúde eram constantes. Os altos índices de mortalidade infantil eram o registro mais claro da precariedade da saúde existente entre os indivíduos pobres. A rede de esgotos existente até o final da década de 1920, mal abrangia a parte do perímetro urbano da cidade. A falta de prolongamento dessa rede de esgotos contribuía para que, em épocas de chuvas, a cidade ficasse contaminada por focos de doenças as mais diversas. Era justamente nas casas dos pobres que as doenças tornavam-se mais corriqueiras.
            O tratamento dessa problemática era mais assistencialista. Foram fundadas associações beneficentes, e campanhas etc. Esse caráter assistencialista continuou ao longo da década de 1920, embora tenha diminuído à medida que critérios científicos e técnicos foram invocados. Na medida em que esse conhecimento mais objetivo substituía o tratamento assistencialista, foi sendo retirada, progressivamente, do trabalhador a autodeterminação do seu modo de vida. O homem pobre passou a receber “visitas” constantes em suas residência dos técnicos que lhe imprimiam informações em torno da higienização da casa e do corpo. Era preciso, nesse sentido, criar novos hábitos e determinados cuidados relativos à alimentação.
            Os critérios científicos, ou técnicos, não escondiam a explicação da falta da educação, desleixo e promiscuidade como fatores importantes para a problemática de saúde. A problemática em torno da alimentação, saúde e moradia dos homens pobres, agravou-se com o aumento populacional ocorrido nessas décadas de 10 e 20. Intensificou-se a concorrência no interior de um mercado de trabalho que não era muito expressivo. Havia, sem sombra de dúvida, um contingente significativo de “desocupados”, refletindo no barateamento da mão de obra. Os operários têxteis sentiam bem de perto essa situação. Eles constituíam uma mão de obra das mais baratas do país. Finalmente, um outro problema que os operários enfrentavam era o trajeto de suas casas para as fábricas. Os que moravam longe das fábricas enfrentavam diariamente áreas não saneadas, de difícil acesso, para chegarem ao trabalho. Para que não chegassem atrasados por causa das multas, ou para que não perdessem o “quarto” (turno da fábrica) viam-se na contingência de sair de casa alta madrugada, levando consigo o seu almoço. Muitas vezes esse trajeto era feito enfrentando grandes temporais.
            Diante desse quadro de penúria dos operarias têxteis e demais indivíduos pobres, pode-se concluir que: toda a modernização por que passava, especificamente, Aracaju, exibia uma face contraditória. Se os melhoramentos materiais e demais benefícios realizados atingiam positivamente a uma faixada população, a outra - a mais numerosa - ficava à margem dos benefícios e era submetida a controles que colocavam suas vidas a serviço do capital.

Referência:

SOUSA, Antônio Lindvaldo. “ Parte do outro lado da modernização...”: Aracaju e os homens pobres nas primeiras décadas do século XX. In:_____Temas de História de Sergipe II. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe/CESAD, 2010.